21 de março de 2007

Ode à Poesia



Vou de comboio...

Vou

Mecanizado e duro como sou

Neste dia;

– E mesmo assim tu vens, tu me visitas!

Tu ranges nestes ferros e palpitas

Dentro de mim, Poesia!


Vão homens a meu lado distraídos

Da sua condição de almas penadas;

Vão outros à janela, diluídos

Nas paisagens passadas...

E porque hei-de ter eu nos meus sentidos

As tuas formas brancas e aladas?


Os campos, imprecisos, nos meus olhos,

Vão de braços abertos às montanhas;

O mar protesta contra não sei quê;

E eu, movido por ti, por tuas manhas,

A sonhar um painel que se não vê!


Porque me tocas? Porque me destinas

Este cilício vivo de cantar?

Porque hei-de eu padecer e ter matinas

Sem sequer acordar?


Porque há-de a tua voz chamar a estrela

Onde descansa e dorme a minha lira?

Que razão te dei eu

Para que a um gesto teu

A harmonia me fira?


Poeta sou e a ti me escravizei,

Incapaz de fugir ao meu destino.

Mas, se todo me dei,

Porque não há-de haver na tua lei

O lugar do menino

Que a fazer versos e a crescer fiquei?


Tanto me apetecia agora ser

Alguém que não cantasse nem sentisse!

Alguém que visse padecer,

E não visse...


Alguém que fosse pelo dia fora

Neutro como um rapaz

Que come e bebe a cada hora

Sem saber o que faz...


Alguém que não tivesse sentimentos,

Pressentimentos,

E coisas de escrever e de exprimir...

Alguém que se deitasse

No banco mais comprido que vagasse,

E pudesse dormir...


Mas eu sei que não posso.

Sei que sou todo vosso,

Ritmos, imagens, emoções!

Sei que serve quem ama,

E que eu jurei amor à minha dama,

À mágica senhora das paixões.


Musa bela, terrível e sagrada,

Imaculada Deusa do condão:

Aqui vou de longada;

Mas aqui estou, e aqui serás louvada,

Se aqui mesmo me obriga a tua mão!


(Miguel Torga, in "Odes", 1946; "Poesia Completa", 2000)

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