21 de março de 2007

Ode à Primavera

(Botticelli, Primavera, c. 1478, Galleria Degli Uffizi, Florença)

A vida anda possessa de Poesia!

Anda prenha de mosto!

Ou é da luz do dia,

Ou é da cor do rosto,

Ou então quer abrir-se, neste gosto

De pão com todo o sal que lhe cabia!


Tem narcisos de amor no coração,

Folhas de acanto nos sentidos!

E carícias na mão

A espreitar dos tendões adormecidos!


Toca-se numa pedra, e ela treme!

Murmura-se uma prece, e a boca grita!

A rabiça do arado é como um leme

Sobre a terra que ondula e ressuscita!

Quem avoluma a sombra, ou quem a teme?

Cada presença é um hino que palpita!

E se na estrada alguém discorda e geme,

Ninguém que vai no sonho o acredita!


Serás tu, Primavera?

Tu, com frutos na rama do futuro,

Com sementes nos pés

E flores inúteis sobre cada muro,

Contentes só da graça que tu és!



(Miguel Torga, in "Odes", 1946; "Poesia Completa", 2000)


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